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Passos perdidos na Justiça
Quando, no início desta legislatura, os deputados e os ministros tomavam posse o judiciário escaldava. Estávamos em 2005, sob os efeitos do caso Casa Pia. Exigia-se acção sobre a Justiça e, acima de tudo, medidas eficazes e certeiras. A expectativa era alta, confortada pela maioria absoluta.
Porém, a principal marca de água desta legislatura acabou por ser a significativa evolução na utilização das novas tecnologias no Sistema de Justiça. Destaca-se o cartão comum do cidadão, o documento único automóvel, a informação predial única, a empresa e a associação na hora, o balcão único e o Citius. São hoje alicerces seguros para servirem de propulsor às outras reformas do judiciário.

A avalanche legislativa foi pautada pela ineficácia e pela insegurança jurídica, alterando-se, inusitada e improvisadamente, o Código Civil, acumulando-se deficientes diplomas, inconstitucionalidades, e milhares de rectificações. No meio desta inflação de diplomas ganharam relevância a Lei das Prioridades da Política Criminal, a reforma do Código de Processo Penal (CPP) e do Código Penal (CP), a Lei da Responsabilidade Extra-Contratual do Estado, o regime dos Funcionários Públicos e o Código de Contratação Pública. E isto apesar dos vários erros, totalmente evitáveis, nas soluções ou nos percursos, como sucedeu com os despropositados 15 dias de Verão reservados à vacatio legis do CPP e do CP, o que originou vicissitudes kafkianas.
Houve um conjunto de reformas idealizadas, mas que se ficaram pelo carácter experimental, por serem medidas avulsas ou regras órfãs de soluções. Assim foi com o Mapa Judiciário, onde ficou tudo por fazer, onde se instalou a confusão entre os operadores e os processos, e onde, num caminho às cegas, não está definida uma ideia do que poderão vir a ser as suas telas finais.
Foram muitos os pontos negros desta legislatura, por inacção ou por intervenção. Não se resolveram os estrangulamentos da acção executiva. O Apoio Judiciário manteve-se somente para os indigentes, negando-se a garantia constitucional de acesso à Justiça. Agravaram-se as custas judiciais, penalizando-se economicamente quem quer recorrer à Justiça, numa doentia aplicação da lei da oferta e da procura. Nada foi feito sobre a gestão dos tribunais e o reforço dos seus recursos humanos, envergonhando-nos a contratação de desempregados para tratarem de cerca de 50.000 processos no DIAP, logo no DIAP. Foram frouxos os movimentos no sistema integrado de informação criminal, na informatização e na rede informática entre as polícias e o Ministério Público. Pretendeu-se fazer crer que a eficácia dos tribunais aumentava com a alteração do regime das férias, numa solução política que, esquecendo o judiciário real, acabou por ter um efeito nocivo.
Esta também foi a legislatura das estatísticas sobre o virtual aumento da celeridade judicial. Invocaram-se números e curvas, criaram-se gráficos e power-points, tudo com a demonstração da redução das pendências. Só que esta redução, só existiu digitalmente, porque não houve um melhor funcionamento dos tribunais. Aqueles números resultaram das “amnistias” nas acções cíveis, através da atribuição - em 2005 e repetido em 2006 – de incentivos fiscais, para as empresas desistirem das cobranças sobre os seus devedores. Foi, isso sim, uma descarada confissão da incapacidade do Estado em cuidar do Sistema. Mas aqueles números também resultaram da desjudicialização, do apoio judiciário estrangulado, do agravamento das custas judiciais e da incrédula desistência do Estado em cobrar custas judiciais devidas aos seus cofres.
Cosméticas à parte, a dura realidade manteve-se, e até se agravou. Veja-se a dramática situação em que o Tribunal do Trabalho de Lisboa mergulhou após a eliminação de um terço das Secções, que originou um vertiginoso aumento da morosidade de qualquer processo, quando, até aí, este era um tribunal com um bom nível de pendências.
Chega o momento do balanço. Nesta análise não podemos negar o esforço e o punhado de boas medidas que foram implementadas. É evidente que este balanço seria muito positivo, mas num outro tempo, talvez há 20 ou há 30 anos.
Só que, nestes últimos quatro anos passámos a estar noutro mundo. A Sociedade de Opinião, de Comunicação e de Informação tornou-nos bem mais exigentes: na intervenção, na solução, na gestão do conhecimento, e na qualidade. Aumentaram, e de que maneira, as reclamações de protecção judicial da cidadania, do mercado, dos reguladores, dos direitos fundamentais, da competitividade e da economia.
O lastro de desajustamentos na Justiça que provinha de 2005 agravou-se com as exigências deste novo mundo. A este ritmo o distanciamento passará a ser irrecuperável quando a geração Y começar a recorrer à Justiça, já daqui a uma década.
Mesmo assim, não nos podemos resignar. É possível construirmos um Sistema de Justiça para este novo mundo. Basta pensar na espectacular eficiência que o fisco adquiriu nesta década, ou nos ganhos que se conseguiram no sector da saúde com a criação da figura do gestor hospitalar.
Como serão os próximos quatro anos? Pelo que consta dos programas eleitorais (e pelo que assistimos na campanha) não se descortina vontade política para enfrentar a dura empreitada a realizar na Justiça.
Exige-se um imediato empenho político, em aceleração Boltiana para uma maratona de reformas.
São 3 os vectores principais.
Antes de mais, a Justiça tem que ser assumida como prioridade financeira do Estado, acabando-se com as penosas faltas de computadores, de salas de magistrados, de verbas para os custos correntes dos tribunais (electricidade, comunicações, traduções). O Estado tem que se empenhar financeiramente na formação (inicial e/ou contínua) dos funcionários e dos magistrados, na criação do assessor do magistrado, na racionalização de recursos e na gestão dos tribunais. O Estado tem que encarar a Justiça como um custo, retomando-se o acesso tendencialmente gratuito, abandonando-se as teses de auto-financiamento, eliminando-se as vagas economicistas e centrando-se a Justiça na perspectiva humanista.
O segundo vector é o da celeridade. Todos sabemos que a Justiça tem o seu tempo. Mas este seu tempo não pode explicar que as testemunhas deponham 4 ou 5 anos após os factos, ou que as sentenças sejam recebidas 1 ou 2 anos após o julgamento. Não, isto não é admissível. E não digam que isto é por causa dos expedientes usados pelos advogados, ou pela preguiça dos magistrados.
A causa está na incapacidade do Sistema em responder ao que lhe é exigido, bem patente na situação caótica que, por absoluta desadequação de meios, se vive nos tribunais de Menores, de Comércio, e nos Administrativos (estes últimos a acumular atrasos, apesar de terem sido dos primeiros informatizados). A falta de celeridade resolve-se com medidas imediatas e estruturais. O reforço de meios, a afectação de recursos aos processos complexos, o imediato arquivamento das irrelevâncias judiciais, a criação de tribunais especializados, menos e melhores leis, a penhora por meios electrónicos, a implementação de depósitos públicos para as penhoras, o acesso do advogado à base de dados sobre os bens penhoráveis e a contingentação de processos dos magistrados.
Mas também a edificação de mais Campus de Justiça, à imagem do que se tem feito em Espanha, com a construção de raiz vocacionada para as necessidades e para a solenidade do exercício da função jurisdicional. Esperemos que, daqui para a frente, não se repita o que foi feito em Lisboa: encaixotaram-se processos, magistrados, funcionários e advogados em edifícios de escritórios, sem a mínima adequação. Foi uma solução de escandaloso retrocesso.
Depois as medidas estruturais, como seja a resolução dos problemas de coordenação da investigação entre o Ministério Público e os órgãos de policia criminal, a que se junta a reforma de Código de Processo Civil, onde se deverá abrir espaço à resolução substantiva dos conflitos, à equidade e à oralidade nos actos judiciais, tudo em detrimento da burocracia e da tecnocracia judicial.
O reforço da dignidade da Justiça é o terceiro vector. Esta legislatura começou com um ataque cerrado aos magistrados, apontados como a fonte de muitos dos problemas da Justiça. Não o podemos ignorar. O palpável recuo deste discurso político não diminuiu a convicção que, no entretanto, se incrustou na sociedade, e que, a partir de certa altura, passou a ser mantida com as incendiárias posições assumidas por um inesperado actor: o Bastonário da Ordem dos Advogados.
O nível da credibilidade da Justiça baixou. E temos que o assumir. Nunca, como nestes quatro anos, assistimos a tantas e tão graves ofensas ao judiciário: assaltos, sequestros e barricadas em tribunais, incluindo agressões a juízes. Junta-se a isto as sondagens em que o nível de confiança na Justiça é colocado de rastos.
É por tudo isto que se impõe uma cultura de responsabilidade, que afaste discursos inflamados, denúncias acobardadas e generalizadas. Temos que acabar com os levantamentos contra a Justiça e contra os seus operadores. Há que fazer regressar a serenidade e a confiança.
É uma responsabilidade que recai sobre todos os que exercem funções com relevância na área da Justiça. Mas é, acima de tudo, uma responsabilidade política, um encargo dos futuros deputados e ministros, que a terão que saber espelhar em declarações, em medidas e em diplomas legais.
Os próximos quatro anos nos Passos Perdidos serão, pois, decisivos para a Justiça entrar na passada certa.