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Devassa da Vida Privada da Criança nos Tribunais

Tribunal da Relação do Porto Anula Uso de Gravações Ilícitas em Processo de Regulação das Responsabilidades Parentais
Decisão do TRP destaca a necessidade de proteger a privacidade das crianças e critica a abordagem displicente dos tribunais de primeira instância.



Devassa da Vida Privada da Criança

O Tribunal da Relação do Porto (TRP) decidiu, por unanimidade, revogar um despacho que permitia a utilização de gravações áudio e vídeo de uma criança num processo de regulação das responsabilidades parentais. O acórdão, proferido em 25 de fevereiro de 2025, conclui que esses registos violam o direito à intimidade, à imagem e à palavra do menor e que a sua admissibilidade nos autos era desnecessária face à existência de outros meios de prova mais adequados e menos intrusivos. Esta decisão sublinha um princípio fundamental: o direito à prova não é absoluto e deve ser sempre ponderado em face dos direitos fundamentais, especialmente quando está em causa a proteção de uma criança. A devassa da sua vida privada não pode ser tolerada como um meio de prova, sob pena de legitimar práticas abusivas por parte dos próprios progenitores.

A Abordagem Displicente dos Tribunais de Primeira Instância

No processo em questão, instaurado pelo progenitor contra a mãe da criança, a requerida juntou ao processo gravações áudio e vídeo em que a criança relatava, de forma emotiva, experiências e sentimentos sobre os convívios com o pai. A admissibilidade desses registos foi contestada pelo progenitor, que alegou violação dos direitos fundamentais do menor e argumentou que a sua utilização como prova era ilegal e atentava contra a privacidade da criança. O tribunal de primeira instância, embora reconhecendo a ilicitude da obtenção dos registos, considerou que a proteção do interesse da criança justificava a admissão da prova, visto que esta se destinava a avaliar o impacto dos convívios com o pai na estabilidade emocional do menor. Esta decisão foi fortemente contestada pelo progenitor, que defendeu que a criança, enquanto parte especialmente vulnerável, viu a sua intimidade exposta sem salvaguardas adequadas, o que constitui um grave abuso da sua privacidade.

Intervenção do Tribunal da Relação do Porto

O progenitor recorreu da decisão, alegando que as gravações violavam direitos de personalidade, incluindo a intimidade e a imagem do menor, que o uso de provas ilícitas compromete a integridade do sistema judicial e que existiam meios de prova alternativos, como a perícia em pedopsicologia forense, que poderiam ser utilizados sem violar os direitos fundamentais da criança. O Tribunal da Relação do Porto deu razão ao recorrente, revogando a decisão de primeira instância. O acórdão enfatiza que o direito à prova não pode sobrepor-se de forma indiscriminada aos direitos fundamentais da criança, sendo necessária uma ponderação rigorosa entre os interesses em causa.

Necessidade de Mecanismos Mais Eficazes na Proteção da Privacidade das Crianças

Este caso alerta para a necessidade de mecanismos mais eficazes na proteção da privacidade das crianças, garantindo que os progenitores não possam utilizar a sua imagem e voz como meros instrumentos processuais, sem consideração pelos seus direitos fundamentais. A gravação e divulgação da imagem e voz de um menor, sem consentimento do outro progenitor, constitui uma intrusão grave na sua vida privada, podendo ter consequências psicológicas duradouras. Ao permitir que estas gravações fossem inicialmente aceites como prova, o tribunal de primeira instância legitimou temporariamente uma prática que põe em causa direitos fundamentais, expondo a criança a um processo que deveria protegê-la. A decisão do TRP corrige esta falha e envia um sinal claro de que práticas abusivas na recolha de provas não serão toleradas.

Conclusão: Um Marco na Proteção da Privacidade Infantil

A decisão do Tribunal da Relação do Porto reafirma que a busca pela verdade não pode justificar a violação de direitos fundamentais. O caso mostra que, em disputas familiares, é essencial garantir que as crianças não sejam instrumentalizadas ou expostas de forma desnecessária, sob o pretexto da obtenção de prova. Com esta decisão, fica claro que a privacidade das crianças deve ser protegida acima de qualquer estratégia litigiosa de um dos progenitores. A aplicação rigorosa do princípio da proibição da prova ilícita garante não só a justiça no caso concreto, mas também a salvaguarda dos direitos das crianças em processos futuros. A mãe da criança, ao gravar e utilizar indevidamente registos privados, violou gravemente a intimidade do menor, expondo-o a uma devassa da sua vida privada sem qualquer justificação aceitável. O TRP, ao revogar a decisão anterior, corrige esta injustiça e reforça a necessidade de um maior escrutínio sobre o uso abusivo de provas em processos de família. Este acórdão estabelece um marco na jurisprudência portuguesa e serve como um alerta para que os tribunais de primeira instância sejam mais rigorosos na proteção dos direitos fundamentais das crianças, garantindo que estas não sejam vítimas de exposições desnecessárias nos processos litigiosos entre os pais.