Em Portugal, a proteção contra a violência doméstica está solidamente ancorada no artigo 152.º do Código Penal. Este dispositivo legal visa proteger vítimas em contextos de vulnerabilidade particular, como cônjuges, ex-cônjuges, parceiros em relações análogas ao casamento, e outras situações que envolvam uma relação de dependência emocional ou física. No entanto, a aplicação deste artigo levanta questões controversas, especialmente em casos onde a relação terminou há várias décadas.
Uma das principais questões é a distância temporal entre o término da relação e o ato de violência. A jurisprudência portuguesa tende a considerar que a proteção do artigo 152.º se aplica a ex-cônjuges, mas essa aplicação pressupõe uma proximidade temporal ou emocional que justifique a proteção especial do Estado. Quando um divórcio ocorreu há 50 anos, muitos argumentam que a ligação emocional e a situação de dependência ou vulnerabilidade que o legislador pretendia proteger já não existem.
"O artigo 152.º do Código Penal destina-se a proteger relações onde ainda há uma dinâmica de poder e dependência. Após 50 anos de divórcio, essa dinâmica provavelmente desapareceu, tornando questionável a aplicação do crime de violência doméstica."
Outra controvérsia é a vulnerabilidade específica da vítima. O artigo 152.º visa proteger vítimas que, devido à natureza da relação, se encontram numa posição de maior fragilidade. Se a vítima não está mais em situação de coabitação ou dependência emocional do agressor, muitos juristas defendem que a proteção especial conferida pelo crime de violência doméstica pode não ser aplicável.
Ainda que a agressão a um ex-cônjuge após 50 anos de divórcio não se enquadre no crime de violência doméstica, tal não significa que a agressão fique impune. O Código Penal oferece outras tipificações para lidar com agressões físicas, como:
A divergência na interpretação legal tem implicações práticas significativas. Para advogados e magistrados, a clareza na aplicação da lei é essencial para assegurar justiça e consistência nas decisões judiciais. Alguns defendem uma revisão legislativa que clarifique a aplicabilidade do artigo 152.º em casos de ex-cônjuges com longos períodos de separação.
A discussão sobre a aplicação do crime de violência doméstica a ex-cônjuges separados há muito tempo revela a complexidade do direito penal em adaptar-se às diversas nuances das relações humanas. Enquanto a proteção das vítimas de violência continua a ser uma prioridade, é necessário um equilíbrio cuidadoso entre a interpretação justa da lei e a realidade das relações interpessoais.
A questão permanece aberta e suscita um debate contínuo entre juristas, legisladores e a sociedade em geral. A evolução da jurisprudência e possíveis reformas legislativas poderão, no futuro, trazer maior clareza e justiça a esta área delicada do direito penal.
O Autor é advogado e colunista. Escreve regularmente sobre temas jurídicos controversos e suas implicações na sociedade portuguesa.