A título de exemplo, numa aquisição de software na óptica de desenvolvimento e funcionamento em produção e serviços necessários ao projecto – análise, desenvolvimento, testes, formação e implementação, poderá exigir a entidade adjudicante a titularidade sobre o produto final, sem restrições?
Haverá, no entanto, que definir e distinguir os conceitos de programa e software.
Programas de software são produtos autónomos, no contexto dos produtos informáticos, imateriais, destinando-se apenas a processar informação, assumindo uma forma essencialmente operativa, baseados nas ideias e procedimentos que os conceberam, pelo que são considerados bens análogos a obras literárias ou de carácter intelectual, independentes e distintos dos suportes físicos em que se armazenam (materiais).
Software é um conjunto de instruções em linguagem acessível à máquina, através das quais se visa a execução de uma função ou a obtenção de um certo resultado , podendo em si, conter vários programas, incluindo também a documentação necessária, vulgo manual do utilizador e testes.
Os programas podem distinguir-se entre programas base, aplicacionais e produto:
a) base: são essenciais ao funcionamento do computador, controlando a integridade dos seus componentes, reconhecendo outros programas;
b) aplicacionais: visam satisfazer necessidades específicas de uma empresa ou pessoa singular;
c) produto: podem incluir-se nos aplicacionais mas visam satisfazer necessidades de ordem geral ou sectorial, susceptível de ser fornecido a vários utilizadores (ex: médicos).
O Software, por se tratar de um bem imaterial, fruto de criação intelectual, consubstanciado em ideias e inovação, independentes da forma, está protegido pela legislação de Direitos de Autor e Direitos Conexos, que, devido à natureza do bem protegido, chega a considerar como reprodução a simples utilização em rede, ou seja, várias visualizações do mesmo programa, do mesmo bem. Nada também parece obstar a que um programa de computador seja objecto de marca, nos termos da propriedade industrial, desde que satisfaça os requisitos aí exigidos , não sendo, no entanto, como tal, um produto patenteável.
No exemplo vertente, afigura-se-nos estarmos perante a encomenda de um programa aplicacional, como produto final de todo o procedimento, para o qual poderá ser necessária a utilização de software e programas já existentes, ou a criar, ou eventualmente, desenvolvimentos, configurações ou interligações daqueles para a obtenção da aplicação desejada.Ou seja, independentemente dos suportes já existentes que venham a ser utilizados, que, em princípio, estarão já registados e sujeitos a licenciamentos (independentemente dos seus titulares) e aos encargos daí decorrentes, o presente procedimento visa a criação de um novo produto, específico para as necessidades do contratante e não a aquisição de um produto já finalizado.
O direito de autor do programa nasce no preciso instante em que o programa, com o requisito de originalidade (não ser banal na indústria dos suportes lógicos), ficou completo, independentemente, da divulgação, publicação, utilização ou exploração, não se podendo confundir o programa com os resultados obtidos, tutelando-se o direito do produtor (investidor).
Desta forma, estes produtos, software ou programas, apenas são transmissíveis sobre a forma de licenças de utilização, em que o titular do direito autoral/patente/marca tem o exclusivo e controla, na totalidade: “a sua utilização, correcção de erros, feitura de cópias, testes de funcionamento e até a descompilação (tradução dos periféricos, que se exprimem no ecrã – visualização - de forma a conhecer a sua linguagem de programação)(...)”
Uma utilização livre e desregulamentada poderia colocar em causa a integridade do mesmo e dos programas associados, integridade essa consubstanciada nos bens móveis (suportes de programas informáticos) como nos bens jurídicos, estes os direitos de autor e os direitos de uso de determinado programa informático, marca, patente e qualquer outro direito de propriedade intelectual ou industrial.
Por seu lado, além do autor, quem encomenda um programa à medida das suas necessidades, deve dedicar uma especial atenção às adaptações ou alterações futuras desse programa, nomeadamente protegendo-o através de cláusulas contratuais que obriguem o fornecedor a prestações futuras.
Pretende-se evitar, com a inclusão destas regras contratuais, a indefinição da titularidade de um programa, produzido pelo fornecedor por encomenda, sobre áreas da actividade do proponente, sendo este quem forneceu todos os dados necessários à elaboração do programa, e que aquele (fornecedor) depois usa difundindo-o junto de entidades similares, como se fosse seu.
Em termos práticos esta questão assume também relevância em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, sobretudo estando em causa um produto e não uma prestação de serviços. A feitura de um programa pode ser objecto de um serviço mas o programa, ou seja, o resultado, não é um serviço, definindo-se como “qualquer coisa móvel ainda que incorporada noutra coisa móvel ou imóvel”.
Considerando o fornecimento de software para satisfação de necessidades específicas como um contrato de prestação de serviços, em que a não cedência das fontes do programa encomendado, deixando o contratante com um sistema incompleto e sem alcançar os benefícios normais, à mercê da assistência do fornecedor, como violador do princípio da boa fé.
Por isso, não pode estar em causa o direito daquele que legitimamente adquiriu um programa, de proceder às operações de carregamento, visualização, execução, transmissão ou armazenamento, necessários ao seu uso normal, além de que ao adquirente não pode ser transmitido um direito sem conteúdo útil se não lhe for permitida a correcção, ajustamento ou modificação do programa do modo a fazê-lo funcionar (ex: caso de desaparecimento do fornecedor) .
Por outro lado, quanto à descompilação do programa , ou seja, proceder à tradução do código objecto para uma versão mais próxima possível do código fonte, procurando-se a desestruturação do programa de modo a chegar à sua lógica originária, só pode ser feita por quem disponha legitimamente do programa e as informações recolhidas não podem ser utilizadas para o desenvolvimento, produção ou comercialização de um programa substancialmente semelhante na sua expressão.
Assim, o legislador nacional protege os que contratam com uma empresa a realização de um programa aplicacional ou a adaptação de um outro e lhe fornecem um conjunto de elementos de sua “propriedade”, e que podiam vir a ser aproveitados indevidamente por aquela. Ou seja, “Quando um programa de computador for criado (...) por encomenda, pertencem ao destinatário do programa os direitos a ele relativos, salvo estipulação em contrário ou se outra coisa resultar das finalidades do contrato ”, não prejudicando, obviamente “a liberdade de ideias e dos princípios que estão na base de qualquer elemento do programa ou da sua operacionalidade, como a lógica, os algoritmos ou a linguagem de programação” .
Deste modo, o autor, singular ou colectivo (que neste caso, poderá ser um funcionário do fornecedor ou do contratante ou obra conjunta) sendo, por princípio o criador intelectual da obra e também titular dos respectivos direitos, ao serem transferidos para outrém – por força dos normativos do concurso e a que se vinculam os concorrente - , o terceiro passa a dispor da sua titularidade, cindindo-se nele o encabeçamento dos direitos patrimoniais, independentemente do direito do criador intelectual individualizável “a ser reconhecido como tal e de ter o seu nome mencionado no programa”.
Em conclusão, salvo melhor opinião, além do produto final,:
a) deverá ser da propriedade da entidade adjudicante todas as configurações ou desenvolvimentos executados ao longo da prestação de serviços;
b) o código-fonte desenvolvido deverá ser, sem restrições, propriedade da adjudicante e o seu uso. Isto é muito importante – caso a entidade adjudicante não fique com as sources (código-fonte), ficará ‘presa’ ao fornecedor da solução. No futuro, na eventualidade de, por questões de preço ou serviço, contratação de outra empresa, não se poderia facilmente alterar desenvolvimentos ou complementar funcionalidades.;
c) o uso da aplicação não sofra limitações.
Salvo as limitações decorrentes da utilização de software ou programas completos, já registados e sujeitos a licenciamento, anteriormente à abertura de concurso ou inicio de procedimento.
E quanto ao tipo de contrato, ou estando em causa entidades públicas?
Caso estivéssemos perante a aquisição de um produto final, em que os fornecedores fossem detentores dos direitos de exploração do programa ou da respectiva marca, possuindo o seu exclusivo, marca essa registada e protegida, seria, em princípio, legítimo que aqueles pudessem exigir o cumprimento de determinados procedimentos, nomeadamente a elaboração de contratos inominados, de forma atípica, elaborado no âmbito da liberdade contratual.
Estes procedimentos de vários tipos contratuais justificam-se pela própria natureza informal, inovadora e imaterial dos bens em causa, protegidas e regulamentadas, em quase exclusividade pelos Direitos de Autor, pelo que se considera que estes constituem-se de razões de interesse geral que justificam restrições à livre circulação de mercadorias no espaço da União Europeia , podendo impor, neste caso concreto, novas formas de divulgação dos programas, ou seja, novas formas de negócio jurídico – contratos – em tudo o que se relacione com estes produtos.
Por isso, a regra é a autonomia contratual, em que as partes escolhem o regime que mais se adapta aos seus interesses, desde que não violem regras de carácter imperativo.
Por outro lado, existe um regime de cláusulas contratuais gerais que se estendem aos contratos individualizados sem possibilidade de influências dos destinatários, ou seja, nestes casos, dada a natureza específica dos produtos em causa e da importância e fragilidade dos direitos a proteger, existe uma quase equiparação aos contratos de adesão (onde o destinatário não pode modificar o clausulado).
Portanto, estamos perante formas mistas de contratar e com produtos específicos, somente previstas e protegidas no âmbito do direito privado, não constituindo qualquer impedimento caso uma das partes seja uma entidade pública.
Nesse caso, segundo o n.º 1 do artigo 197.º do Código de Procedimento Administrativo, os órgãos administrativos podem celebrar contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer.
As entidades públicas estão sujeitas à livre escolha do contrato administrativo, podendo celebrar contratos de direito privado, excepto quando bem ou a forma é vinculativa.
A título de exemplo, a celebração de um contrato de concessão de serviço público não pode basear-se no princípio da livre utilização do contrato administrativo, não porque a forma “contrato administrativo” esteja afastada, mas pura e simplesmente porque, de acordo com o princípio da legalidade da Administração, o conteúdo de um tal contrato reclama uma habilitação legal específica, que não a administrativa.
Neste caso, a relação jurídica não tem de ser feita através de contrato administrativo porque o objecto não é exclusivo do direito administrativo.
No entanto, estando em causa uma entidade pública, sujeita a restrições e a vinculações decorrentes do facto de gerir dinheiros públicos e prosseguir interesses colectivos, podem e devem ser aplicadas normas de direito administrativo que salvaguardam a posição pública, e, consequentemente, a gestão de bens alheios.
Pelo que, neste caso, deve a Administração trazer à colação normas de direito administrativo ínsitas no Decreto-Lei n.º 197/99 que institui o regime jurídico de realização de despesas públicas e da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e serviços, adaptando-o à esta realidade.